quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Das ausências

Tenho recebido centenas de e-mails a perguntar se morri...
Ok, eu confesso, foi só de uma pessoa - era um doente meu, a quem eu dei, por engano o endereço deste blog quando estava a passar-lhe duas embalagens de um antipsicótico, antes que os gregos, perdão, o Governo, diminuísse, de forma inexorável, a comparticipação... Os meus núcleos paranóides suspeitam que ele quer saber que valor atingirão as minhas receitas, assinadas, no Ebay...

Agora a sério...
Para todos os que se perguntam se algo me aconteceu, informo que estou submerso perante uma pilha de documentos.
E, brevemente, submergirei perante uma pilha de livros, ou não tivesse eu uma certa nostalgia dos tempos da faculdade...

Não prometo que volto (qualquer promessa, com os tempos que atravessamos, corre sérios riscos de se desvanecer por culpa dos gregos...), mas o mais certo é ir voltando...

E, para nos inspirar, aqui vai um vídeo realizado pela "Crew" da Faculdade de Medicina de Lisboa...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A culpa é do sistema?



O que é comum ao Serviço Nacional de Saúde e às SCUT?
Não, não é o facto de ter buracos por tudo quanto é sítio... (Aliás, toda a gente sabe que as autoestradas deste País são o paradigma da boa construção - basta ir à A8...)
É o facto de toda a gente pensar que, pelo facto de ser "tendencialmente gratuito" não se faz pagar - e bem, pelos Portugueses... e que os recursos a ele associados não são escassos...

Isso é especialmente verdade quando a malta se lembra de exigir um serviço de urgência polivalente, com ortopedia, medicina interna, cardiologia, obstetrícia, dermato-venerologia, pneumologia, medicina tropical e sexologia clínica, a cada 20 km...

Algo está, igualmente a falhar, quando algumas pessoas vão às 5 da manhã para a fila da consulta de urgência no centro de saúde, porque "se sentem sozinhas em casa e precisam de conversar"...
Devo admitir que os 2 ou 3 euros que se paga por uma consulta de urgência no Centro de Saúde são muito mais baratos do que ir a uma consulta de Psicologia... ou, diz-se, ligar para aquelas senhoras que aparecem muito despidas em anúncios da televisão e dizem "Me liga, vai!"... mas são seguramente mais caros do que conversar com os vizinhos, ligar para o SOS Voz Amiga, ou ir desabafar com o padre da paróquia...
O problema não é exclusivo das pessoas que vão para a fila: algo está a falhar ainda antes dos cuidados de saúde - associações de apoio à terceira idade, organizações não governamentais...

A questão por si não teria importância se não estrangulasse os cuidados primários, que, já de si sufocados com mobilidades, PEC'S e outras coisas que ficam muito bem no orçamento, já mal conseguem dar conta do recado...Os cuidados de saúde primários não conseguem ser acessíveis às pessoas...

E qual o resultado?

Qualquer pessoa, mesmo tendo uma depressão daquelas que não matam mas moem, há 10 anos, uma unha encravada há 10 meses, ou uma gripe que se trata a chá de limão com mel, há 10 horas, desemboca na urgência...

E manter urgências abertas para tratar situações que poderiam ser encaminhadas com uma boa rede de cuidados primários é como construir uma casa pelo telhado...

Não me entendam mal... Temos dos melhores serviços de saúde do Mundo... Se podia estar mais organizado? Podia... mas não era a mesma coisa...

quinta-feira, 4 de março de 2010

A quase ciclotimia da profissão

Cada vez estou mais convencido de que a nossa adaptação à profissão, ou àquilo que fazemos na vida, evolui por ciclos.
Num dia, achamos que até temos jeito para aquilo que fazemos. A vida corre-nos bem, até conseguimos ter uma relação satisfatória com as pessoas que tratamos e com os colegas de trabalho.  Verificamos que os nossos doentes, apesar de tudo, até melhoram, e sentimo-nos moral e pessoalmente recompensados. Com os nossos colegas temos uma relação perfeitamente harmoniosa (ou pelo menos sem cenas de pugilato, o que já não é mau…). Sentimo-nos, do ponto de vista técnico, científico e pessoal plenamente validados e respeitados. A nossa consulta do hospital cada vez está melhor. Ainda bem que escolhemos a profissão – dizemos, exultantes… Como diria um certo Cândido, tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos…
Para quê mudar a nossa profissão, a Vida, o Mundo?
Daí a uns dias, umas semanas, uns meses, com ou sem factor desencadeante, achamos que somos uma nódoa completa, que somos as pessoas mais incompetentes à face da terra, e que não temos jeito para coisa nenhuma, perguntamo-nos a nós próprios como vamos ser capazes de fazer o exame de especialidade que se aproxima a passos largos, Sentimos que a nossa consulta hospitalar é comparável a uma autêntica máquina de encher chouriços: entra doente (em linguagem económica e politicamente correcta, utente ou, mais modernamente, cliente) , sai doente + receita + consulta marcada daí a uma infinidade de tempo, porque os doentes são cada vez mais e os médicos cada vez menos… (ou em linguagem económica e politicamente correcta, a estrutura está cada vez mais ligeira…)
Nestas alturas, questionamos a nossa própria capacidade de comunicação interpessoal, com os doentes e com os colegas de profissão. Os primeiros, até pioram… Quanto a estes últimos, transformamo-los, salvo algumas excepções, num conjunto de seres cínicos, frios e superficiais que acumulam em si tudo quanto é traço socio e psicopático da personalidade, e que têm uma opinião sobre os nossos atributos técnicos e pessoais semelhante à que a maior parte dos portugueses tem dos atributos vocais do Zé Kabra…
Vislumbramos quarenta mil futuros alternativos, todos resplendorosos, e que passam, pasme-se, pelas opções que estavam ao lado, na nossa vida, e que não tomámos. Arrependemo-nos amargamente das bolinhas que, em tempos idos, quase que numa outra vida, colocámos num boletim alaranjado (ainda não se falava sequer de Internet nem de candidaturas por esse meio), que, depois de uma fila de algumas horas, numa escola secundária do centro da cidade, entregámos, cheios de esperança no futuro.
Pensamos na carreira brilhante que poderíamos ter tido na engenharia, ou num qualquer ramo da matemática, excepto a combinatória, bem entendido… Esquecemo-nos do quão secante pode ser a algoritmia, ou do quão intragável se pode, para os mais incautos, tornar a álgebra linear. Pensamos no quão isenta de preocupações, ralações e mesquinhices seria a nossa vida se tivéssemos escolhido passá-la rodeados de números e de algaraviadas cheirando a fórmulas matemáticas, fechados no nosso mundo e isolados do resto da Humanidade...
Consideramos mudar de especialidade, mudar de profissão, mudar de Mundo.
Esquecemo-nos do quanto aprendemos nos últimos anos sobre a Vida e sobre as pessoas. Esquecemo-nos de que essas mesmas escolhas do passado condicionaram aquilo que somos hoje.
E, tudo isto, porque somos “muito fortes”, guardamos para nós (a maior parte de nós, porque queremos manter uma determinada imagem nos outros) e recusamo-nos a partilhar estas dúvidas existenciais com quem quer que seja… E vamos vivendo a nossa vidinha, como se não fosse nada, explodindo de vez em quando, e esquecendo-nos de que os outros, muitas vezes, têm dúvidas existenciais/vocacionais semelhantes às nossas, e que estas são transversais a várias pessoas, a várias profissões e a várias sociedades.
Até a um novo dia, em que achamos que temos algum jeito para aquilo que fazemos… e tudo se repete, uma e outra vez…

PS – Ciclotimia – característica temperamental que se caracteriza pela variação relativamente rápida – em dias - do humor, sem factor desencadeante aparente.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Quickie

Como se deixa uma pessoa com personalidade obsessiva ocupada durante meia hora?

  1. Dá-se-lhe um papel e uma caneta 
  2. Retira-se computadores, telemóveis, calculadoras, e todo e qualquer objecto que seja mais recente que um original d'Os Lusíadas... 
  3. Pede-se para calcular o valor de PI com 1000 casas decimais.
Como se deixa um hiperactivo com déficit de atenção ocupado dois dias?

  1. Retira-se o papel e a caneta (se houver)
  2. Dá-se-lhe um computador com acesso à internet e 200 jogos instalados.
  3. Diz-se-lhe: "Agora não sais daí enquanto não escreveres um ensaio de 1 página a descrever a paisagem que vês da tua janela"

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

De molho...


Quando os doentes da nossa consulta de segunda-feira à tarde se despedem de nós, numa clara inversão de papéis, com a expressão "Então as suas melhoras, doutor...", há um sinal de que algo se passa, e que é tempo de pararmos um bocadinho...
Confesso que detesto estar engripado... A sensação de apneia causada pelo nariz obstruído, as dores musculares, como quem ficou todo partido do ginásio sem ir lá há uns bons meses, a tosse, produtiva,  de 15 em 15 segundos (sobre a qual não vou ser escatológico o suficiente, a ponto de descrever a semiologia da expectoração), as noites perdidas entre lenços de papel cheios, a cabeça como se tivéssemos duas ressacas ao mesmo tempo, dão-me cabo da paciência...
Do lado positivo, há o beijo agri-doce da vitamina C, o sumo de laranja feito pelo robot de cozinha que custa o equivalente ao PIB de um pequeno país Africano (com o devido respeito pelos pequenos países africanos) mas pelo menos faz umas sopas, a justificação mais que muita para se estar a dormir...
Portanto, tive de decidir passar o Carnaval mascarado de enfermo... Só espero é que, à semelhança do jogo da infância de algumas das pessoas que nasceram na década de 70, ou no início da década de 80, não me venham tirar peças de plástico cá de dentro e não me obriguem a fazer buzz...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Mau génio




Ricardo Araújo Pereira é, para muitos, o melhor humorista português. Para outros, nomes como Herman José, Badaró, Raúl Solnado, Vasco Santana ou José Sócrates são mais do que consensuais... Outros, ainda, argumentarão que o humor é uma característica do povo português, patente em obras magistrais como o Processo Apito Dourado, ou que o melhor humorista é um anónimo jornalista do "24 horas" (para não ser sempre o "Correio da Manhã" o culpado), que escreve todos os dias com um pseudónimo diferente...
Para mim, um dos melhores humoristas portugueses de todos os tempos é André Brun.  E não, não estou a brincar aos pseudo-intelectualóides de esquerda que devoram filme franceses ao pequeno almoço, em vez de comerem criancinhas... É mesmo sincero...
André Brun viveu no Portugal do início do Século Passado, que, pelos vistos, era em tudo semelhante ao Portugal de hoje, só que com menos défice orçamental e com o petróleo mais barato...
Numa altura em que quem sonhasse sequer com a ideia de haver possibilidade de falar à distância com outras pessoas, ou de ler textos que existem apenas numa realidade etérea, daria direito a exorcismo imediato, André Brun consegue a proeza de retratar, com uma penada, há 96 anos, a maioria dos comentários dos leitores online do Correio da Manhã (isto é perseguição!!!) ou do Público...


"MAU GÉNIO


Está demonstrado que um portuguez mata sete pessoas por dia, em média. Logo de manhã acorda e pergunta se já viéram as botas do sapateiro, onde estão a receber fabrico de meias solas e atacadores novos. Ao saber que o homem faltou como um cão ao prometido, primeiro homicídio:
- Mariola! Bandido! Pulha! Safardana! Com que botas hei-de sair agora? Só dando um tiro naquêle tipo...
A família lá o aquiéta com um chavena de café com leite, calmante poderoso para o alfacinha, e dá-lhe os jornais para lêr. Logo na terceira coluna vem a transcrição duma gasêta estrangeira, em que o regimen é caluniado e se reclama a intervenção das potências. O furôr não conhece limites:
- Ah cães! Infames! O que êles precisavam era a lingua cortada, a mão decepada, o bofe arrancado pelos tornesêlos e a vida fóra...
Para socegar os nervos, lê o anuncio do Zé Clemente, levanta-se, lava a cara e vae almoçar. Comparece um bacalhausinho, cercado duma numerosa comissão de grêlos. Fala-se na carestia dos géneros alimentícios, na exploração dos revendedôres, e erguida a faca escorrendo aseite, o nosso amigo berra:
- O que êles precisavam sei eu! Não querem crer que isto não vae lá doutra maneira. Se eu governasse meia hora, enforcava meia dûsia e veriam como isso ficava de emenda...
Enrolado o guardanapo, sae o homem á rua. Está uma carroça parada e um brutamontes á pancada ao pobre cavalinho? Claro está que a unica maneira de remedear o caso era dar uma chicotada no selvagem e matá-lo para o ensinar a viver. No placard dum jornal lê-se que um chauffer atropelou um cidadão pacato e ordeiro? Forma de faser justiça: fusilar metade doschauffers e pegar fôgo aos automoveis que andem com excesso de velocidade. Se acrescentarmos a isto que os sindicalistas todos deviam ser fritos em aseite, que os namorados que matam as namoradas se lhes deviam arrancar as unhas dos pés, etc., etc., podemos faser uma pequena ideia do pitorêsco que teria a existencia, se fosse regulada pelas impulsões de que os portuguêses são tão pródigos. Nas questões particulares nem se fala. Todos nós temos pelo menos cincoenta vitimas em vista, pessoas que nos têm sido desagradeveis e a quem aplicariamos os mais inquisitoriais tormentos.
Afinal de contas somos todos incapases de faser mal a uma mosca e estamos sempre prontos a lançar nos ao mar para salvar uma sardinha que corra risco de se afogar.

André Brun, 30-Junho-913"


Nota: O texto é transcrito com a ortografia original, numa altura em que placard se escrevia placard e não placar... O clube de fãs de Malaca Casteleiro e do Acordo Ortográfico que se insurja a ver se eu me importo....

sábado, 23 de janeiro de 2010

Eu também nunca me vou habituar

Hoje, tenho razões para dizer que, tal como o Calvin e a Paracucanunca me vou habituar... a comunicar "a notícia" à família. Subscrevo inteiramente o que eles disseram...

Como se faz um psiquiatra

A pedido de várias famílias, aqui vai uma dissertação de alguns minutos sobre "como se faz um psiquiatra"

O que é um psiquiatra?

Um Psiquiatra é um médico. Só que, em vez de tratar outro tipo de coisas, como por exemplo hemorróidas, especializa-se no diagnóstico e tratamento de pessoas com doença mental. Mas o papel do psiquiatra, como o de qualquer médico, não se deve limitar só a isso... Deve incide sobre a prevenção da doença e sobre a promoção da saúde, bem como educação para a saúde.
Ocasionalmente, há psiquiatras que pensam que esta especialidade é um ramo da filosofia. Isto dá-lhes uma abrangência completamente diferente, reservando-se a si próprios o direito de opinar sobre tudo o que vier à discussão. São uma espécie de Marcelos Rebelos de Sousa da Psiquiatria, mas sem o brilhantismo...

Quais são as implicações do facto de o psiquiatra ser médico?

O facto de ser médico tem várias implicações associadas, como por exemplo:
  • Tem uma licenciatura em Medicina, que inclui um estágio final, e um período de formação chamado Ano Comum, em que passa por várias especialidades médicas "fundamentais".
  • Faz um Juramento no início da carreira, em que, entre outras coisas, jura que o doente é a sua primeira preocupação.
  • Recebe sempre no Natal figuras, estatuetas, azulejos e outras obras de arte a lembrar-lhe isso mesmo.
  • Faz uma especialidade de Psiquiatria (5 anos além do ano comum), com vários estágios dentro das diferentes sub-áreas da especialidade.
  • A preparação em Medicina confere conhecimentos não só para fazer diagnósticos, mas também para escolher a melhor opção terapêutica, de acordo com o seu conhecimento.
  • Os psiquiatras estão sujeitos à tutela deontológica da Ordem dos Médicos.
  • De vez em quando (regra geral, uma vez ou mais por semana) os psiquiatras têm de fazer uma coisa chamada serviço de urgência. No serviço de urgência, o médico exercita várias competências: técnicas de persuasão, luta na lama, introdução à burocracia, introdução ao cargo de polícia sinaleiro... de psiquiatria propriamente dita, o serviço de urgência tem, de vez em quando, algumas coisas...

Que terapêuticas é que o psiquiatra pode realizar/administrar?


O psiquiatra pode prescrever fármacos ou prescrever/realizar outro tipo de terapêuticas (por exemplo, electroconvulsivoterapia, estimulação magnética transcraniana....). Pode, igualmente, articular com outros técnicos de saúde mental, para realizar outro tipo de intervenções  (como por exemplo, a dança da chuva, que foi fruto de várias meta-análises no The Onion e no Q Fever...), podendo realiza-las se tiver qualificação para tal.
Como médico, o psiquiatra está deverá prescrever/realizar intervenções devidamente baseadas na evidência científica. Isso não significa que não haja psiquiatras que não entendam que, pelo facto de uma determinada escola de pensamento, em que se inserem, ter um dado tipo de postura, não a defendam como um verdadeiro talibã, mesmo que a evidência científica a sustentá-la não seja assim tão forte...
Nesse caso específico das religiões, devo dizer que sou mais pela Bimby...
Normalmente, o psiquiatra não trabalha isolado. Trabalha em equipa com vários profissionais: o psicólogo, o psicopedagogo, o médico de família, o assistente social... mas também, segundo algumas escolas, com o padre, o xamã e a stripper...

Qual é a diferença entre um psiquiatra e um psicólogo?

  • A primeira diferença é o tipo de canudo... O psicólogo tem uma licenciatura em psicologia. O psicólogo é exímio a fazer avaliações ("o que vê neste desenho?"), em caso de dúvidas de diagnóstico e, normalmente, tem formação em psicoterapia, pelo que pode realiza-las a pedido do psiquiatra ou do médico de família.
  • Teoricamente, quem faz os diagnósticos é o psiquiatra, apoiado na história clínica, no exame do estado mental e nos exames complementares de diagnóstico, que podem incluir exames imagiológicos ou análises clínicas, e a avaliação feita pelo psicólogo.
  • O psicólogo não tem vinhetas - não pode passar receitas nem atestados... (too bad.... :P)

Para se ir para psiquiatria é preciso ter uma determinada estrutura?


Não. Se bem que ter 1,90m e 110 kg de peso ajude, quando se trata de doentes mais agitados...
A nível psicológico, tal como os cirurgiões se têm que esterilizar antes de uma operação, o psiquiatra também deve, durante a formação, adquirir ferramentas para lidar com o sofrimento próprio e o dos outros...
Por experiência própria, devo dizer que o que mais custa não é lidar com as pessoas com doença mental, mas sim com a sociedade em que estão inseridos...



Como se forma um psiquiatra?


Depois de passar pela licenciatura em medicina, onde tem contacto com psicopatologia em várias vertentes, o aspirante a psiquiatra tem de fazer um exame baseado num livro de Medicina Interna. Na prática, isto significa empinar capítulos desse livro e fazer perguntas de escolha múltipla sobre isso...
Depois, faz 12 meses de ano comum, já remunerado, em que passa por várias especialidades, a saber: Medicina, Cirurgia, Pediatria, Ginecologia/Obstetricia e Medicina Geral e Familiar.
Só aí, se sobreviver a este processo todo, ingressa na formação específica do internato médico. Durante este período, passa por vários estágios, a saber:
  • 24 meses de internamento - em enfermarias de serviços de psiquiatria
  • 3 meses de neurologia
  • 3 meses de psiquiatria de ligação (a disciplina da psiquiatria que lida com a interrelação com as outras especialidades médicas)
  • 6 meses de pedopsiquiatria
  • 6 meses numa estrutura de internamento parcial (hospital de dia)
  • 3 meses em serviços de reabilitação de abuso de substâncias
  • 3 meses em serviço de psiquiatria comunitária
  • 12 meses em estágios opcionais.
É obrigatória, neste período, a realização de serviço de urgência e a realização de consulta, ainda que com supervisão, pelo menos em teoria...
E é assim que se forma um psiquiatra... Em posts próximos, focaremos "Como se faz um electricista", Como se faz um serralheiro mecânico" e "Como se faz um boneco de loiça das Caldas"...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Bujoterapia

Dos cânones da Psicologia e da Psiquiatria constam várias abordagens terapêuticas, desde a electroconvulsivoterapia até às psicoterapias transpessoais.
Não vou aqui hoje discutir a eficácia/efectividade de nenhuma das mais clássicas, apesar de subscrever plenamente o que um professor irlandês de Psiconeuroimunologia dizia: "If I ever go nuts, connect me to the mains..." (Tradução livre: "Se eu ficar doente, ponham-me o dedo na ficha eléctrica e dêem-me músicas do Nel Monteiro") (Tradução do Google: "Se eu enlouquecer, me ligar à corrente")



Contudo, gostaria de deixar aqui uma nota sobre a bujoterapia.


A bujoterapia já é conhecida desde o Egipto. De acordo com a evidência científica, tem um indubitável valor profiláctico no que toca à saúde mental. Pensa-se que tenha ainda um valor curativo no que toca à oligúria.


A formação em bujoterapia não dura muito tempo. Talvez uns 30 minutos... É feita, de forma continuada, nas tascas à volta das escolas e faculdades deste país... As pessoas do sexo masculino são, à partida, peritas na coisa.
A bujoterapia não requer um grande investimento. Apenas a necessária e suficiente quota-parte na cadeia de lojas de distribuição alimentar mais próxima... Consta que a bujoterapia tem uma relação custo/benefício bastante boa na Alemanha, motivo que vai originar, segundo se espera, um grande fluxo migratório para esse país, nos próximos tempos.


Para os que ainda se questionam sobre o que é a bujoterapia, penso que as instruções para a sua realização serão elucidativas. As instruções que se seguem são válidas para o sexo masculino (oh não, mais um post machista...) mas poderão ser adaptáveis facilmente ao sexo oposto...


1) Vá à loja da cadeia de distribuição alimentar mais próxima e compre 5 litros de cerveja, ou arranje uma geringonça destas ou similar e siga as instruções
2) Assegure-se que a "patroa" foi sair com as amigas
3) Convide os amigos lá para casa
4) Saboreie em conjunto com os seus amigos o líquido amare... dourado...
5) Permita que cada um fale de si, de mulheres, do trabalho, de futebol, do que quer que seja... (tópicos para as mulheres: compras, roupa, pensos higiénicos - grande parte dos anúncios de pensos higiénicos revelam-nos que cada vez que um grupo de mulheres se junta é para falar sobre pensos higiénicos ou tampões, o que quer que seja...)
6) Repita o tratamento semanal ou quinzenalmente.


Vantagens da bujoterapia:
  • Promove a autoestima
  • Melhora o suporte social
  • Melhora a assertividade e a expressão das emoções.
  • Quando em contexto de obra, melhora a qualidade dos piropos
Advertências:

  • A bujoterapia, como qualquer tratamento, não deve ser usado em excesso, pois transforma fígados saudáveis em iscas com elas.
  • O consumo agudo de bujas pode fazê-lo fazer table-dancing e imitar a Amy Winehouse... 
  • A bujoterapia dá dependência se for feita todos os dias... 
  • Pode, igualmente, contribuir para sugar uma parte significativa dos seus rendimento. Mas isso, também os papa-reformas e o Ministério das Finanças... já para não falar daquelas senhoras que gostam de dançar em varões...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Eu sobrevivi...

... à vacina da gripe A!

E confesso que, aparte umas amigdalas hiperemiadas [vermelhas] e alguma odinofagia [dor de garganta], e as mazelas decorrentes de uma técnica de injecção com ligeiras semelhanças com as formas de tortura nos campos de concentração do regime de Pol Pot, nem sequer uma interrupção de gravidez tive...

Mas também só passaram 24 horas... Ainda vou a tempo de ter uma intoxicação por mercúrio, dada a quantidade cataclísmica de timerosal existente na vacina, de acordo com algumas fontes (as mesmas que dizem que a microsoft doa 5 cêntimos por cada e-mail que reencaminhemos...)

Se eu por acaso começar com um mutismo grande, daqueles que parecem mesmo um coma, eu coloco aqui só para terem um update da situação...

(Ah, isto não é o twitter? Então esqueçam...)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ecce homo...

"A homossexualidade não é uma doença" - a frase, repetida até à exaustão pelo assistente que me calhou na rifa em tudo quanto era aula prática de Psiquiatria, na faculdade, ganhou um novo ênfase nos últimos meses.

Saiba-se lá porquê, os media deste canto da península Ibérica (há quem diga que pertencemos ao continente europeu...), desataram, há uns meses, a apregoar aos quatro ventos, a existência de uma suposta "cura" para a homossexualidade.

Quer dizer, lá porque a malta tem um curso de Medicina, e, de vez em quando, ser equiparada à categoria de  Divindade (com direito a queixas nas mais altas instâncias judiciais deste país, nomeadamente, os tablóides) nós podemos escolher quem é que gosta de meninas e quem é que gosta de meninos, ou que cavidades corporais é que as pessoas usam, e para que funções...

Decerto honrado por ter sido promovido a moralizador das cavidades corporais do pessoal, o sempre douto colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos levou como trabalho para casa a elaboração de um parecer sobre esta matéria. Lá se pronunciou, da forma diplomática que lhe é característica, reiterando a frase predilecta do meu assistente, mas dizendo que havia, ainda, na classificação da Organização Mundial de Saúde, uma coisa reminiscente, chamada Homossexualidade Egodistónica.

E aqui é que a porca torce o rabo... Salvo seja, porque ninguém quer discriminar a porca!
Egodistónico é um palavrão que se usa quando aspectos do comportamento, dos impulsos, dos pensamentos ou da personalidade são desconfortáveis para um indivíduo, ocorrendo não por sua escolha mas contra a sua vontade.

Para perceber este laivo de "psiquiatrês" que é o conceito de egodistonia, deixemos por agora a questão da homossexualidade: imaginemos uma pessoa a quem acorrem à cabeça, de forma sistemática e contra a sua vontade, ideias de bater na sogra. Não é assim tão comum, mas suponhamos que essa pessoa até gosta da sogra. De repente vêm estas ideias à cabeça, não havendo outro remédio senão lutar contra elas...
A questão é que lutar contra estas ideias dá uma trabalheira enorme. Pode, por exemplo, fazer com que a pessoa deixe de fazer a sua actividade normal... Pode, inclusive, conduzir a ansiedade e depressão, com agravamento dos sintomas. É este o significado de egodistonia.

A intervenção de qualquer técnico de saúde mental vai no sentido de baixar, à pessoa em questão, os níveis de ansiedade, os quais aumentam, em espiral, a egodistonia, bem como impedir que a pessoa fique presa à volta do mesmo pensamento. (não é o pensamento em si mas o "ficar presa" que nos preocupa...) Isto faz-se com psicofármacos, com psicoterapia e com psicopedagogia...

Portanto, em relação a esta questão, aquilo que se vai tratar é essa tal de egodistonia.

Com a homossexualidade egodistónica, deverá passar-se o mesmo. O cerne da questão não é o ser-se homossexual, mas sim a egodistonia, nestes indivíduos.  É ela, bem como as suas consequências, que deve ser alvo de tratamento... e sempre, como em tudo na medicina, com o consentimento livre e esclarecido do indivíduo em questão...

Agora, dizer que a homossexualidade é uma doença e tem tratamento, é tão verdade como dizer que, numa mulher, ter peitos pequenos é uma doença e que se deveria pôr os Wonderbra à venda nas farmácias sob prescrição médica, e comparticipar os implantes de silicone... (Com a devida vénia às senhoras que lêem isto e deixando que façam a analogia com o equivalente no sexo oposto...)