domingo, 26 de abril de 2009

Crónica dos bons psicomalandros (1)

Psicomalandrice é a arte subtil de aproveitar a Psiquiatria do SNS para resolver os seus problemas e contrariedades.

A partir de hoje, este blog publicará, de forma muito sistemática, uma sequência de soluções para problemas muito concretos, utilizando a arte da psicomalandrice. Aprenda a levar a água ao seu moínho!



Problema: O marido/mulher zanga-se consigo e você não tem coragem para o/a enfrentar.

Solução:

  1. Quando apanhar o marido/mulher fora de casa, pegue numa caixa de aspirinas.
  2. Não tome muitas, só duas ou três, porque depois são comprimidos a mais e dá problemas de estômago.
  3. A seguir, apanhe um táxi e corra para as urgências de psiquiatria da área
  4. Diga ao médico da triagem que está a pensar em matar-se e que tomou duas caixas de toda a medicação lá de casa, incluíndo os xaropes para a tosse...
  5. Com sorte ele, alarmado, pede para lhe fazerem uma lavagem gástrica.
  6. Encontram lá as três aspirinas.
  7. O médico, ainda mais alarmado, pede a observação pela psiquiatria.
  8. Faça a cara mais de caso possível e diga a mesma coisa que disse há pouco ao psiquiatra, mas com olhos de cachorro abandonado.
  9. (Não diga ao psiquiatra que o seu marido é uma besta e que se está a pensar divorciar.)
  10. Se tiver sorte, o psiquiatra procede ao internamento. Se não tiver sorte, repita os passos anteriores num dia qualquer da semana seguinte, quando o marido estiver fora de casa...
  11. Chegado/a ao internamento, aproveite a vida. Por exemplo, marque cabeleireiro, pinte as unhas, diga aos enfermeiros/as que lhe doem as cruzes e peça para lhe fazerem massagens, dê umas "voltinhas" com outras pessoas na mesma situação...
  12. Quando a equipa do internamento descobrir a marosca, atire-se para o chão e faça de conta que é um defunto.. (variante: pode também, no chão, fazer de conta que se está a afogar, sem água...)
  13. 8 dias depois de ter alta, repita todos os passos anteriores.
  14. Quando a equipa de psiquiatria da área já conhecer todos os pormenores da sua vida de cor, mude de área de residência. Há um Portugal inteiro à sua espera!


terça-feira, 21 de abril de 2009

A pequena imperadora

Já não me lembro do nome dela. Sinceramente, varreu-se-me ao fim de um ano de labuta mais ou menos intensa...

Vamos chamar-lhe Sofia. Encontrei-a aquando pela passagem pela Pedopsiquiatria.

Fora internada compulsivamente. Tinha agredido a mãe, porque esta se recusara a comprar-lhe um computador novo.

O pai, coleccionador e vendedor de selos, vivia alheado de todo o mundo, entregue às suas colecções e à rigidez das suas regras, que de vez em quando vergavam a muito custo e sob solicitação da mãe.

A mãe, essa, tinha um ar sofrido. Em criança tinha deixado de brincar com brinquedos, por falta de dinheiro para os comprar. Prometera a si própria que a filha nunca haveria de passar por vicissitudes desse género.
Trabalhava que se desunhava para isso, e não conseguia resistir ao choro da criança, que em breve se transformou num coro de exigências, e depois em insultos, ameaças, fugas de casa e, depois, naquele episódio..
Por isso, comprava-lhe, desde tenra idade, quase contando os tostões para comer, tudo o que podia: peluches, bonecas, doces, salgados, jogos caros, roupas de marca, um computador... Às vezes, fazia-o à revelia do pai, que, após descoberto o erro, encolhia os ombros e voltava para os selos da sua predilecção.

Sofia, nos últimos meses, perante a anarquia grassante em casa no que toca a regras, vinha fazendo mais e mais exigências aos pais: uma torneira sensível à aproximação das mãos, roupas cada vez mais caras. Quando os pais lhe respondiam que não tinham dinheiro para satisfazer as suas exigências, os gritos de "Odeio-te!" e a choradeira multiplicavam-se em crescendo.

Até ao dia em que bateu na mãe.

Aí, os pais, pela primeira vez na vida de Sofia, procuraram ajuda em todo o lado, excepto para a dinâmica da família: foram à comissão de protecção de menores e ao tribunal de menores da área, que emitiu um mandado de condução à urgência, tendo em vista o seu internamento compulsivo. Aí, foi internada compulsivamente para esclarecimento.

Foi assim que ela me foi parar às mãos.
O primeiro contacto foi hostil: tratava-se de uma moça de catorze anos, ligeiramente obesa, que exigia querelantemente a alta imediata. Estava visivelmente assustada com a situação.

Convoquei a família para uma reunião, com a supervisão directa e próxima do meu tutor desse estágio. Na reunião, Sofia chorava e fazia exigências, enquanto que, discretamente, olhava para os pais pelo canto do olho, para ver a sua reacção. A mãe, sem perceber nada, enervada, quase que saiu da sala.
Tive que intervir. Mandei Sofia sair da sala, e fiz uma explicação detalhada sobre o facto de, desde criança, as pessoas aprenderem a manipular os outros, ainda que inconscientemente...

Depois de várias sessões com Sofia e com os pais, elaborou-se um plano de tratamento, quer psicofarmacológico, quer psicoterapêutico. Ouvidas as partes, definiu-se um contrato terapêutico, com regras explícitas no que toca às exigências dos pais e de Carolina e penalidades em caso de infracção às regras. Estabeleceu-se a indicação para seguimento por uma psicóloga da Comissão e uma pedopsiquiatra da consulta externa, com acompanhamento e revisão do contrato terapêutico.

Tudo em vão.

Passados um ou dois meses, a mãe de Sofia procurou os médicos do internamento. Multiplicavam-se as ameaças aos pais, no seguimento de uma quebra no cumprimento das regras.

Sofia quebrara o contrato.

Os médicos do internamento remeteram simpaticamente a mãe de Sofia para os respectivos chefes.

Entretanto, saí do estágio. Não sei mais o que se passou com Sofia.

Casos como este são cada vez mais nos corredores da Pedopsiquiatria, e, depois, da Psiquiatria de adultos.

O estágio de Pedopsiquiatria fez-me, sinceramente, deprimir: noto que é cada vez mais difícil ser pai.

Noto que a sociedade está cada vez mais exigente para com os pais, para com os professores, e ao mesmo tempo a criar situações de completa demissão de funções, para uns e para outros. Exige-se a uns e a outros aquilo que eles não podem fazer, em nome de quê?

Quais os resultados práticos disto? Será que não estamos (Sociedade) a criar uma multidão de pequenos imperadores, egocêntricos, obesos, consumistas, sem respeito pelos outros, capazes de tudo para obter afecto ou bens materias? Como fazer para inverter a situação?

Como educar os pais? Como ser um pai (ou mãe) "suficientemente bom", de acordo com as características da sociedade actual?

Alguém me consegue responder a isto?
(Ou será que eu preciso de pôr as gotas na sopa?)