sábado, 11 de outubro de 2008

Como não manter a saúde mental

O seu namorado/a deixou-o/a? A sua família anda toda à traulitada? O seu patrão é um psicopata e ameaça-o todos os dias com o seu posto de trabalho? Faleceu-lhe o piriquito, após uma crise de seborreia aguda? Está com dívidas até ao pescoço, por causa da crise do subprime? O seu cão não lhe liga?

Reconhece que os psiquiatras e psicólogos, mesmo apesar da crise do subprime, também precisam de ganhar a vida?

Além de, em nome dos profissionais de saúde mental, lhe agradecer o reconhecimento, e como ontem foi dia da Saúde Mental e a pedido de várias famílias (Pronto, foi só de uma...), aqui vão algumas sugestões sobre como não manter a sanidade...

  1. Isole-se - De facto, você reconhece que sempre foi um verdadeiro bicho do mato. Nasceu sozinho e há-de morrer sozinho, mau grado todas aquelas teorias, completamente descabidas, de que o homem é um ser gregário.
    De facto, vendo bem, os ajuntamentos de mais de uma pessoa só servem para reivindicar qualquer coisa (mais em França do que cá), ou então para comentar a vida dos vizinhos do lado ou a telenovela... e o facto de as interacções sociais serem um excelente estímulo para a pessoa não são argumentos a ter em conta...
  2. Feche-se à mudança - você sempre foi como foi... para quê mudar? Para quê fazer um restyling do visual, uma lavagem ao carro, uma psicoterapia? Para quê mudar comportamentos e atitudes? Quem gosta de si, que goste dos seus ataques de mau feitio, da sua timidez, do facto de ligar a tudo o que os outros possam sequer pensar, dos seus ataques de hipocondria, da sua atitude de se estar sempre a lamentar de tudo e não fazer nada para melhorar a sua vida... mesmo que você se sinta mal com isso...
  3. Não confraternize com a família e os amigos- tal como falar, confraternizar, além de pura perda de tempo, como se viu antes, pode ser nefasto. Lembre-se do provérbio brasileiro: "Pato e parente só serve pra sujar a casa da gente". Cultive o medo de que desabafar com outros pode afastar os mesmos de si, e esqueça-se que o facto de falar sobre aquilo que o preocupa lhe pode trazer novas perspectivas sobre velhos problemas...
  4. Não faça exercício físico. - Para gastar calorias, não precisa de ginásio. O zapping da televisão serve perfeitamente. Além disso, fazer exercício aumenta o risco de vir a sofrer de rupturas musculares. Que se danem as endorfinas libertadas durante o mesmo... não é nada que a sensação de prazer e bem estar de comportamentos com menos risco de traumatismo e maior risco de explosão, como snifar gás butano, não resolvam... Além disso, quem é que não quer ser conhecido/a como o menino/a do gás?
  5. Não cultive/desvalorize aquilo que é saudável em si - por exemplo, se gosta de jogar dominó, para quê jogá-lo? Nem sequer é desporto olímpico! Se gosta de rir a bandeiras despregadas com os Monty Python, para quê fazê-lo? Eles nem sequer são já todos vivos!
    Todos nós temos núcleos saudáveis: as coisas que gostamos de fazer, o nosso humor, tudo aquilo que nos dá prazer... Não cultive nada disso...
  6. Refugie-se na bebida/em substâncias de abuso - para quê resolver os problemas se os pode afogar no "trotil"? o chato é a dor de cabeça no dia a seguir, mas se se voltar a beber, essa dor até passa... E com o repetir deste comportamento, até se aumenta grandemente o PIB, à custa da elevação dos rendimentos das cooperativas vinícolas, dos gastroenterologistas especialistas em hepatologia e das farmacêuticas que comercializam imunossupressores. (um transplante hepático custa uns milhares de euros...) Além disso, mantém-se o posto de trabalho das instituições de polícia em Portugal, só à custa das queixas de violência doméstica. Aliás, afogar as mágoas é uma das formas de garantir o preceituado no ponto 1.
  7. Não consulte o seu médico, caso ache que tenha sintomas de algum problema emocional - Os médicos só servem para passar receitas, e os químicos fazem mal a tudo o que mexe... Por isso, mande o seu médico às urtigas... Além disso, os psicólogos e os psiquiatras, bem como os terapeutas ocupacionais e técnicos de psicoeducação, são para malucos, não são para si... A única coisa que esta gente toda poderia fazer era usar qualquer método que o ajudasse e prevenisse que o desequilíbrio bioquímico que grassa na sua cabeça se trate, e não evolua, com todas as consequências que isso tem (incluindo transformar-se numa pessoa chata...) Isto, obviamente, incluindo, além da componente de psicofármacos, a mudança de estilos e hábitos de pensamento, ou quaisquer outras coisas que eles consigam fazer...
E agora, faça exactamente o contrário daquilo que escrevi, para diminuir a probabilidade de ser, ao longo do seu tempo de vida, afectado por um flagelo que afecta, durante o seu tempo de vida, uma em cada quatro pessoas no planeta: a doença mental.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

E porque hoje é...

...Dia Mundial da Saúde Mental...

(Para quem não sabe, o Dia da Saúde Mental é uma coisa mais ou menos semelhante ao dia da Criança ou ao dia dos Avós, mas mais abrangente, porque é dirigida a todos - a Saúde Mental - que não é igual a Psiquiatria, tem a ver com todos nós - sem aqueles programas irritantes do Manuel Luis Goucha)

e porque o estigma afecta toda a gente...



segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Limites

O estágio de psiquiatria, para a maior parte dos internos de psiquiatria de adultos, desperta sensações um pouco antagónicas: ou se ama, ou se odeia.
São vários os argumentos para se amar ou odiar. Mas não é sobre os defeitos e virtudes do estágio de pedopsiquiatria que devo aqui falar. Vou falar sobre aquilo que nós, profissionais de saúde, sentimos quando lidamos com familiares, e como isso pode, às vezes erradamente, interferir na forma como lidamos com os doentes.

A esse respeito, vou contar uma história.
Um belo dia, o chefe do serviço de pedopsiquiatria onde estava colocado, pediu-me para fazer o que pudesse por uma doente que tinha ido para a psiquiatria de adultos. A rapariga tinha sido seguida por ele, tendo-lhe sido diagnosticada uma doença bipolar. Foi seguida na consulta de pedopsiquiatria até aos 20 e muitos anos, altura em que, por determinação superior, teve de ir parar à psiquiatria de adultos. Andou perdida durante uns tempos, tendo tido um episódio maníaco e sido internada.
Depois do internamento, teve a primeira consulta, mas entretanto, a psiquiatra de adultos - a drª H., que a seguia, e que via vinte e muitos doentes em cada uma das manhãs em que ia dar consulta (porque nos outros dias estava noutras áreas do Hospital), resolveu sair do Hospital. Os doentes ficaram algum tempo sem médico, tendo ido parar aos cuidados de outra colega, interna como eu.
Esta colega reduziu as consultas para dez por manhã, o que é um número, na minha opinião, perfeitamente aceitável, para uma consulta de psiquiatria dada por um especialista.
(Os internos, para quem não sabe, são médicos em formação. Por isso, dada a necessidade de supervisão, os números teoricamente não deveriam ser superiores.) Como só ia um dia por semana dar consulta, porque no restante tempo, estagiava noutros sítios e fazia urgência, os doentes acumularam-se, a lista de espera cresceu, e a consulta tornou-se um caos.

Durante o período em que tinha estado sem médico, a doente tinha descompensado da sua doença bipolar. Depois de uma primeira consulta, foi-lhe marcada uma consulta para Fevereiro, à qual a doente faltou. Entretanto, só foi possível remarcar para Julho.

A mãe da doente recorreu então, chorosa, ao pedopsiquiatra que a tinha seguido uns anos antes, para tentar que ele a seguisse.
Foi assim que o chefe de serviço de pedopsiquiatria me pediu a minha intervenção, no sentido de tentar acelerar o processo. Como fazia urgência daí a uns dias, ofereci-me para seguir a doente na urgência até à próxima consulta, retomando esta depois o seu seguimento. Assim, com benefícios para a doente, não infringia ética nenhuma, e preservava a relação com a colega.

Liguei ao padrasto da doente. A conversa foi mais ou menos como se seguiu:

Eu - Estou? Estou a falar com o sr. S?
Padrasto - Sim.
Eu - Daqui fala X., médico. Estou a falar da parte do dr. J., e estou a trabalhar em psiquiatria de adultos. Estou a estagiar com ele e ele pediu-me para ver a A.
Padrasto - O dr. J? Conheço-o perfeitamente, é um excelente médico e uma excelente pessoa. Além disso, somos grandes amigos dele.
(...)
Eu (depois de 10 minutos a ouvir elogiar o chefe e a suposta amizade, quase íntima)- Como está a A.?
Padrasto - Oiça, X. - respondeu, tratando-me pelo meu nome próprio - Não está bem. Desde que deixou de ser seguida pela H. (o nome próprio da médica que a tinha seguido antes da colega interna, que não está bem. Não quer fazer medicação.
Eu - Mas eu posso vê-la na urgência! Conseguem trazê-la à urgência?
Padrasto - Ela devia era ter ficado no hospital. A H. não devia ter-lhe dado alta sem eu lhe dizer para dar alta, sem ter ido lá e ver como ela estava. É que eu percebo muito de psiquiatria, porque estive em África e sou Engenheiro...
Eu - (depois de uns segundos a tentar acreditar no que acabava de ouvir) Bom, obviamente que não vou comentar a opção e a atitude da drª H. Aquilo que lhe posso dizer é que, tanto quanto sei, tenho-a como uma pessoa extremamente competente e dedicada aos seus doentes.
Então eu vou falar com a drª K. (o nome da colega interna) para tentar acelerar a consulta.
Padrasto - A K. (nome próprio da colega interna) não percebe nada de psiquiatria. Marcou uma consulta para Fevereiro. A A. faltou, de certeza porque já não estava bem, e ela só marcou para Julho!
Eu - Também não vou comentar isso. Vamos combinar o seguinte, se a conseguirem trazer a A. à urgência daqui a 2 dias, muito bem. Caso contrário, sugiro que vão ao delegado de saúde, para ser accionado o internamento compulsivo.
Padrasto - Mas nem ela vai à urgência nem nós queremos que ela seja internada.
Eu - Pois, mas se calhar esta poderá ser a única forma de ajudar. Bom, eu de qualquer forma vou ter de ir, mas estejam à vontade para aparecer na urgência nos dias X, Y ou Z, quando eu estou de serviço na urgência- e dei-lhes a escala até ao fim desse mês. De qualquer modo, vou falar com a colega para se acelerar a consulta, mas a situação, tanto quanto sei, é complicada, e o melhor será mesmo ir à urgência. Uma boa tarde e obrigado.

E desliguei, receando, na óptica do senhor, passar, também eu, a ser considerado como alvo a abater, daí a uns tempos.

Pondo a mão na consciência, podia ter feito mais, nomeadamente ter-me oferecido para ver a rapariga no 16ª lugar de um dos meus dias de consulta. (eu limito-as, mas, talvez erradamente, não tanto.) No entanto posso invocar várias razões para não actuar assim, desde as razões éticas às clínicas.

É perfeitamente possível que tenha havido uma contra-transferência minha em relação ao padrasto, e a rapariga tenha saído prejudicada, mas o certo é que talvez não percebesse o suficiente de engenharia ou de etnologia africana para a tratar... quanto mais de psiquiatria!

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Os profissionais de saúde e a hipocondríase (ou a falta dela)

Serve esta conversa para, a pedido de uma ou duas famílias, falar sobre a mania das doenças.

Contra alguns ensinamentos sabiamente veiculados por certas correntes da psiquiatria/psicologia, vou fazer um self-disclosure. Preparados? Aqui vai: tal como há pessoas que têm um cão, um gato, um canário, um peixe ou um ácaro em casa, real ou imaginário, eu tenho uma asma de estimação, que de vez em quando passeio por onde quer que vá.
O problema destas asmas de estimação além de não poderem ser compradas nem vendidas em lojas de animais, é que, tal como os cãezinhos que insistem em fazer as suas necessidades em sítios impróprios, às vezes dão problemas chatos: a falta de ar, a "gataria no peito" que insiste em miar desmesuradamente, a tosse, as exclamações animadoras dos colegas "Tu estás tuberculoso!" e outras chatices que tais... E isto repete-se, na sequência de qualquer resfriado, constipação ou gripe, por mais pequeno que seja, tal como se repetem as promessas, feitas ao jeito de qualquer político que se preze, à família próxima: "Sim, eu vou ao médico. Eu ligo já amanhã para o dr. X (e aqui vai o nome do meu médico de sempre) para ele me ver!"

A minha atitude consubstancia uma de duas possíveis nos profissionais de saúde. Todos nós, desde o admministrativo até à senhora (ou senhor) que, felizmente, limpa o chão da enfermaria, nos classificamos em dois tipos, face à nossa própria saúde:
  1. Ou somos completamente hipocondríacos
  2. Ou nos estamos completamente a borrifar para todo e qualquer sinal ou sintoma que cheire,saiba, soe ou aparente ser relacionado com uma doença.

A maior parte das vezes, (mas nem sempre) temos a posição exactamente inversa em relação àqueles que nos rodeiam:

  1. Ou somos completamente obsessivos em relação ao mais pequeno sinal de que o outro possa estar com uma nódoa negra
  2. Ou dizemos "isso é cancro da próstata" sempre que a nossa tia de 85 anos nos relata, pela trigésima terceira vez na última hora, toda a vivência fenomenológica das suas artroses.

Por falar em nisso, confesso que é difícil lidar com a situação de os nossos parentes nos caçarem em reuniões de família, aproveitando sagazmente o intervalo entre dois croquetes para nos relatar as novidades mais recentes sobre o seu corrimento nasal. Curiosamente, um não pequeno número de vezes, começam a sua interpelação pela frase "Desculpe lá estar a dizer-lhe isto agora, mas fui ao médico das varizes e ele disse-me que..." E depois, invariavelmente, terminam com a sua pergunta sacramental: "O que é que acha?" ou "Que medicamento posso tomar para isto?"

A minha estratégia em relação a isso é, ou colocar o resto do croquete à boca, fingir um engasgo e tentar ir buscar um qualquer líquido, de preferência bebível, que possa deglutir, ou então responder com evasivas do género "Pois, o ... ( e aqui ponho o nome de um medicamento qualquer, de preferência de venda livre) é muito bom para isso, mas é melhor ir ao seu médico..."

Mas não me interpretem mal. Eu até simpatizo com os hipocondríacos.

Primeiro, porque admiro a arte de transformar uma inocente dor de cabeça num glioblastoma da pior espécie.

Depois porque acredito que a hipocondríase se pode tratar. Basta assumir-se que, em vez das trinta mil doenças, que curiosamente, se assemelham todas com cancro, se tem uma perturbação de ansiedade, aguda ou crónica, que associada à mania de ter o controlo sobre as coisas (e ao medo de o perder), tem o condão de ser dirigida ao corpo. (Vendo pela positiva, há quem a dirija em relação ao Benfica, aos filhos ou à economia...) Só que isso, o desmontar desses esquemas, demora tempo, e implica um trabalho psicoterapêutico e muitas vezes psicofarmacológico. E implica informação. Adequada, simples e racional, com dados probabilísticos claros (ao contrário do que aparece em certas bulas de medicamentos)... Por exemplo, qual é a probabilidade de uma dor de barriga ser o reflexo de uma carcinomatose peritoneal?

E depois, porque, qual lobisomem em noite de lua cheia, me transformo num hipocondríaco, quando por acaso sofro de coisas que não percebo muito bem a fisiopatologia... Mas aí, arranjo forma de controlar a ansiedade (que é adaptada à situação, entenda-se) e tento não perguntar aos médicos da minha lista de contactos se vou desta para melhor. Até porque não quero aumentar de forma demasiado indiscreta os lucros da minha operadora de telemóvel...