quinta-feira, 4 de março de 2010

A quase ciclotimia da profissão

Cada vez estou mais convencido de que a nossa adaptação à profissão, ou àquilo que fazemos na vida, evolui por ciclos.
Num dia, achamos que até temos jeito para aquilo que fazemos. A vida corre-nos bem, até conseguimos ter uma relação satisfatória com as pessoas que tratamos e com os colegas de trabalho.  Verificamos que os nossos doentes, apesar de tudo, até melhoram, e sentimo-nos moral e pessoalmente recompensados. Com os nossos colegas temos uma relação perfeitamente harmoniosa (ou pelo menos sem cenas de pugilato, o que já não é mau…). Sentimo-nos, do ponto de vista técnico, científico e pessoal plenamente validados e respeitados. A nossa consulta do hospital cada vez está melhor. Ainda bem que escolhemos a profissão – dizemos, exultantes… Como diria um certo Cândido, tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos…
Para quê mudar a nossa profissão, a Vida, o Mundo?
Daí a uns dias, umas semanas, uns meses, com ou sem factor desencadeante, achamos que somos uma nódoa completa, que somos as pessoas mais incompetentes à face da terra, e que não temos jeito para coisa nenhuma, perguntamo-nos a nós próprios como vamos ser capazes de fazer o exame de especialidade que se aproxima a passos largos, Sentimos que a nossa consulta hospitalar é comparável a uma autêntica máquina de encher chouriços: entra doente (em linguagem económica e politicamente correcta, utente ou, mais modernamente, cliente) , sai doente + receita + consulta marcada daí a uma infinidade de tempo, porque os doentes são cada vez mais e os médicos cada vez menos… (ou em linguagem económica e politicamente correcta, a estrutura está cada vez mais ligeira…)
Nestas alturas, questionamos a nossa própria capacidade de comunicação interpessoal, com os doentes e com os colegas de profissão. Os primeiros, até pioram… Quanto a estes últimos, transformamo-los, salvo algumas excepções, num conjunto de seres cínicos, frios e superficiais que acumulam em si tudo quanto é traço socio e psicopático da personalidade, e que têm uma opinião sobre os nossos atributos técnicos e pessoais semelhante à que a maior parte dos portugueses tem dos atributos vocais do Zé Kabra…
Vislumbramos quarenta mil futuros alternativos, todos resplendorosos, e que passam, pasme-se, pelas opções que estavam ao lado, na nossa vida, e que não tomámos. Arrependemo-nos amargamente das bolinhas que, em tempos idos, quase que numa outra vida, colocámos num boletim alaranjado (ainda não se falava sequer de Internet nem de candidaturas por esse meio), que, depois de uma fila de algumas horas, numa escola secundária do centro da cidade, entregámos, cheios de esperança no futuro.
Pensamos na carreira brilhante que poderíamos ter tido na engenharia, ou num qualquer ramo da matemática, excepto a combinatória, bem entendido… Esquecemo-nos do quão secante pode ser a algoritmia, ou do quão intragável se pode, para os mais incautos, tornar a álgebra linear. Pensamos no quão isenta de preocupações, ralações e mesquinhices seria a nossa vida se tivéssemos escolhido passá-la rodeados de números e de algaraviadas cheirando a fórmulas matemáticas, fechados no nosso mundo e isolados do resto da Humanidade...
Consideramos mudar de especialidade, mudar de profissão, mudar de Mundo.
Esquecemo-nos do quanto aprendemos nos últimos anos sobre a Vida e sobre as pessoas. Esquecemo-nos de que essas mesmas escolhas do passado condicionaram aquilo que somos hoje.
E, tudo isto, porque somos “muito fortes”, guardamos para nós (a maior parte de nós, porque queremos manter uma determinada imagem nos outros) e recusamo-nos a partilhar estas dúvidas existenciais com quem quer que seja… E vamos vivendo a nossa vidinha, como se não fosse nada, explodindo de vez em quando, e esquecendo-nos de que os outros, muitas vezes, têm dúvidas existenciais/vocacionais semelhantes às nossas, e que estas são transversais a várias pessoas, a várias profissões e a várias sociedades.
Até a um novo dia, em que achamos que temos algum jeito para aquilo que fazemos… e tudo se repete, uma e outra vez…

PS – Ciclotimia – característica temperamental que se caracteriza pela variação relativamente rápida – em dias - do humor, sem factor desencadeante aparente.