terça-feira, 24 de novembro de 2015

Aquele abraço...

Acordei cedo.
Às 6 da manhã, como se uma vela se tivesse apagado.
Acordei a sentir aquele vazio existencial que às vezes as pessoas sentem. Despachei-me de forma atabalhoada. Fui pelo caminho zangado com tudo e com todos. No fundo, comigo próprio.
Entrei no serviço atrasado. A secretária de unidade, aquele elemento frenético da equipa sem o qual o Serviço não existia como Serviço, e a quem habituei, desde que lá estou, a tratar, de forma recíproca,por tu, esperava por mim, de pé, a porta do meu gabinete, com ar grave, e deu-me a notícia: 
- Tenho uma má notícia para ti -  faleceu uma das tuas doentes... a Srª X...
Fiquei estarrecido. Não estava à espera.
Fiz o possível por saber o que se tinha passado. Pedi à Secretária para ligar a uma das Irmãs, que a tinham acompanhado no Hospital desde o primeiro minuto. 
Família unida, pensara, quando internei a Srª X. 
Não deixarei de recordar o rapport hostil de uma das Irmãs nessa data. Estava zangada com o Sistema, e com toda a razão. E, naquela sala da Urgência, eu personificava o Sistema...
Não deixarei de recordar a reunião, uma semana depois.
Iniciei-a com o sentido de humor que tento imprimir no meu dia-a-dia e que está para mim como as luvas estão para o cirurgião. Perguntei, logo à entrada, à Irmã, se me ia bater... Recebi de resposta, com um sorriso: "Hoje não, Doutor..."
Dei-me conta da razão de ser do rapport hostil... A hostilidade era a de quem tinha sentido na pele a Doença do Pai, e via o Tempo descrever uma das suas piruetas repetindo a História Natural da Doença, e tudo o que lhe está associado - o sofrimento , o estigma, a sensação de impotência/revolta dos familiares -  na Srª X. Era a de quem defendia os seus, no matter what...
Não deixarei de recordar que estive a falar duas horas com as Irmãs. No início, foi uma conversa como qualquer outra das conversas com familiares - psicoeducativa, um pouco asseptica. Mas a frieza das pessoas feitas números, que, por vezes me faz querer pendurar a bata, deu lugar ao calor humano das pessoas feitas Pessoas, que me faz querer continuar a fazer clínica até poder. Tal é a ciclotimia da profissão... Falámos dos constrangimentos da prática medica, de erro médico, de sistemas de saúde. Falámos de perturbação mental e de Cidadania. Do ser Humano que existe para lá do Doente,  do ser Humano que existe para lá do familiar, do ser Humano que existe para lá  do médico. 
Não deixarei de recordar a vontade de continuar a conversa, não tivesse eu que ir ver uma doente a outro sítio, e de querer que nos tivéssemos encontrado noutro contexto qualquer.
Não deixarei de recordar o "não só não lhe bato como lhe dou o Abraço da Paz" no fim da reunião...
... e a Srª X tinha falecido... Aquilo não estava a acontecer!
Liguei a uma das Irmãs. Perante a urgência da situação, não tive outra hipotese, senão dar-lhe, telefonicamente, a infeliz notícia, da forma menos atabalhoada que consegui, e disponibilizei-me para as receber, tendo desmarcado os compromissos que pude. Cumpri os compromissos que não pude desmarcar de forma absolutamente mecânica e em piloto automático. Pura e simplesmente não dava para o fazer de outra forma.
Reuni com as Irmãs. Tentei descrever o que se tinha passado de forma tão factual quanto possível, mas não consegui disfarçar a voz embaçada e os olhos molhados, nem deixar de lhes dar um abraço, violando a suposta neutralidade da relação médico-doente ou médico-família. 
A voz embaçada de quem lhe apetecia pendurar a bata e escaqueirar, tal como um dos meus doentes da consulta desse dia, num acesso de raiva, a primeira porta que lhe aparecesse à frente e os olhos molhados de quem se sentia muito, mas muito pequenino.

E as Irmãs notaram-no. 
De tal forma, senti que acabaram por ser elas a confortar-me, numa irónica inversão de papéis...

Lidar com a morte de um doente nosso é algo que, como me disse outra das Irmãs, "não nos ensinam na Faculdade". Palavras de um amigo seu,  Professor de Medicina. Assino por baixo. Oxalá eu não tivesse essa experiência...
Não estou nem, penso, nunca estarei, preparado para tal.

Post scriptum:
No dia seguinte, acordei a pensar na Sra X e nas Irmãs. Tive vontade de pendurar a bata para sempre, como tenho tido, sempre que me faleceram alguns doentes, ou não fosse, para mim, o querer desistir uma parte do processo de luto. Mas a minha família (re)animou-me para começar o dia de trabalho: "Cheer up,  Lad...  You know what they say... (...)  Always look on the bright side of Life... " 

Vim a trautear a música no caminho. 
Resta-me a música. E resta-me aquele Abraço, que foi a única coisa que, no momento, pude dar àquela Família. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Teoria da relatividade


A mais-do-que-batida-piada de que o Psiquiatra é aquele que olha para a reacção dos presentes quando entra uma mulher bonita na sala, pode fazer com que se formule várias hipóteses sobre o dito, em alternativa. A saber:

  • É um mestre da relativização
  • Ou tem uma visão 0,5/20 (para quem não percebe de oftalmologia, é um bocadinho mais do que certos árbitros da primeira divisão do futebol português, mas a anos-luz de qualquer toupeira...)
  • Ou tomou, propositadamente ou não, uma dose elevada de um antipsicótico à vossa escolha
  • Ou não se sente atraído por mulheres e/ou prefere Aristófanes
  • Ou tem a esposa ao lado...
Pessoalmente, prefiro a primeira opção. Acho-a muito mais romântica e fica sempre bem no curriculum vitae. 

Uma das coisas que se aprende com a prática da psiquiatria, da medicina, do dominó, da vendas de enciclopédias e de outras ciências similares sem as quais a civilização moderna não passaria, é a relativizar.

Permite-nos deslocalizar, por instantes, o foco da nossa atenção, e dar-nos uma nova perspectiva da realidade, out of the box, ou para lá do umbigo...
Permite-nos diferenciar o essencial do acessório e focarmo-nos no que realmente importa...
Permite abrir portas onde se fecharam janelas, apreciar as estrelas quando o sol se pôs e vários outros clichés pseudomotivacionais de que não me lembro agora...

Mas na prática, dá-nos a hipótese de tentar compreender porque é que o sr. Almerindo, recentemente reformado de 67 anos, ou a D. Carla, recentemente divorciada, de 39 anos, nos chegam à consulta aos gritos... Talvez por uma recente perda de ocupação...

E isso repercute-se na restante vida: consegue-se perceber que a nossa tia Laércia, de 85 anos, já meio demenciada, é o terror das auxiliares da casa de repouso onde está, praticando a política do quero, posso e mando, mas sempre foi muito senhora do seu nariz e, pura e simplesmente, está com dores na coluna... 

Tudo é, de facto, relativo neste mundo.

Como diria David Mourão Ferreira:

"Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira, in 'Cancioneiro de Natal' "

Não quero deprimir ninguém, nem ser, apesar da altura do ano, suficientemente tétrico, mas um post a dizer "Voltei, mas agora acreditem mesmo!" seria um tanto ou quanto repetitivo...

E não sei se voltei. Ou se é o blog que voltou a mim... Tudo é, de facto relativo! Até a vida...