Cada vez estou mais convencido de que a nossa adaptação à profissão, ou àquilo que fazemos na vida, evolui por ciclos.
Num dia, achamos que até temos jeito para aquilo que fazemos. A vida corre-nos bem, até conseguimos ter uma relação satisfatória com as pessoas que tratamos e com os colegas de trabalho. Verificamos que os nossos doentes, apesar de tudo, até melhoram, e sentimo-nos moral e pessoalmente recompensados. Com os nossos colegas temos uma relação perfeitamente harmoniosa (ou pelo menos sem cenas de pugilato, o que já não é mau…). Sentimo-nos, do ponto de vista técnico, científico e pessoal plenamente validados e respeitados. A nossa consulta do hospital cada vez está melhor. Ainda bem que escolhemos a profissão – dizemos, exultantes… Como diria um certo Cândido, tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos…
Para quê mudar a nossa profissão, a Vida, o Mundo?
Daí a uns dias, umas semanas, uns meses, com ou sem factor desencadeante, achamos que somos uma nódoa completa, que somos as pessoas mais incompetentes à face da terra, e que não temos jeito para coisa nenhuma, perguntamo-nos a nós próprios como vamos ser capazes de fazer o exame de especialidade que se aproxima a passos largos, Sentimos que a nossa consulta hospitalar é comparável a uma autêntica máquina de encher chouriços: entra doente (em linguagem económica e politicamente correcta, utente ou, mais modernamente, cliente) , sai doente + receita + consulta marcada daí a uma infinidade de tempo, porque os doentes são cada vez mais e os médicos cada vez menos… (ou em linguagem económica e politicamente correcta, a estrutura está cada vez mais ligeira…)
Nestas alturas, questionamos a nossa própria capacidade de comunicação interpessoal, com os doentes e com os colegas de profissão. Os primeiros, até pioram… Quanto a estes últimos, transformamo-los, salvo algumas excepções, num conjunto de seres cínicos, frios e superficiais que acumulam em si tudo quanto é traço socio e psicopático da personalidade, e que têm uma opinião sobre os nossos atributos técnicos e pessoais semelhante à que a maior parte dos portugueses tem dos atributos vocais do Zé Kabra…
Vislumbramos quarenta mil futuros alternativos, todos resplendorosos, e que passam, pasme-se, pelas opções que estavam ao lado, na nossa vida, e que não tomámos. Arrependemo-nos amargamente das bolinhas que, em tempos idos, quase que numa outra vida, colocámos num boletim alaranjado (ainda não se falava sequer de Internet nem de candidaturas por esse meio), que, depois de uma fila de algumas horas, numa escola secundária do centro da cidade, entregámos, cheios de esperança no futuro.
Pensamos na carreira brilhante que poderíamos ter tido na engenharia, ou num qualquer ramo da matemática, excepto a combinatória, bem entendido… Esquecemo-nos do quão secante pode ser a algoritmia, ou do quão intragável se pode, para os mais incautos, tornar a álgebra linear. Pensamos no quão isenta de preocupações, ralações e mesquinhices seria a nossa vida se tivéssemos escolhido passá-la rodeados de números e de algaraviadas cheirando a fórmulas matemáticas, fechados no nosso mundo e isolados do resto da Humanidade...
Consideramos mudar de especialidade, mudar de profissão, mudar de Mundo.
Esquecemo-nos do quanto aprendemos nos últimos anos sobre a Vida e sobre as pessoas. Esquecemo-nos de que essas mesmas escolhas do passado condicionaram aquilo que somos hoje.
E, tudo isto, porque somos “muito fortes”, guardamos para nós (a maior parte de nós, porque queremos manter uma determinada imagem nos outros) e recusamo-nos a partilhar estas dúvidas existenciais com quem quer que seja… E vamos vivendo a nossa vidinha, como se não fosse nada, explodindo de vez em quando, e esquecendo-nos de que os outros, muitas vezes, têm dúvidas existenciais/vocacionais semelhantes às nossas, e que estas são transversais a várias pessoas, a várias profissões e a várias sociedades.
Até a um novo dia, em que achamos que temos algum jeito para aquilo que fazemos… e tudo se repete, uma e outra vez…
PS – Ciclotimia – característica temperamental que se caracteriza pela variação relativamente rápida – em dias - do humor, sem factor desencadeante aparente.
13 comentários:
É isso mesmo, acontece-nos a todos, independentemente da profissão escolhida. No entanto, na psiquiatria, digo eu, a comparação com os doentes ajuda a relativizar os problemas que o psiquiatra possa estar a sentir, funcionará como terapia. Será?
Ora aqui está uma situação que a mim também me ocorre imensas vezes... vezes demais! Acontecem todas as vezes em que aparentemente não há nada que desencadeie (tal como ao Dr.), mais aquelas alturas do mês que só as mulheres sabem compreender porque é "mal" do qual só nós padecemos 1 vez por mês. Agora que ninguém nos ouve, às vezes até penso: quem é que pode aturar as mulheres com tantas alterações de humor e momentos de dúvidas existencias?
Portanto Dr., se me permite uma sugestão, ignore esses poucos momentos que deve ter, porque como diz, a coisa até é ciclica, voltando depois a ficar tudo em cima outravez.
e aí está! a "ciclotímia da profissão"...é que é mesmo isso!
Por exemplo, hoje as consultas correram-me bem...sinto-me uma nurse do best!
Amanhã...sei lá...talvez uma nódoa nojenta e asquerosa que devia ter ido para "stairs washing course"
Brandie, não necessáriamente. Aqui, a "bujoterapia" com os colegas faz milagres...
Atena, aturar as mulheres nessas alturas do mês é, no mínimo complicado, como tudo na vida, mas nós não podemos passar sem elas... ;)
Quanto ao ignorar, depende do tipo de situação, e sobretudo da causa...
Por vezes é preciso trabalhar directamente sobre a causa, e às vezes não é fácil...
MA-S, de facto existe para todas as profissões... Eu tenho um colega de curso que, ainda enquanto estudante, dizia "È desta que eu vou para pedreiro"...
Acho que todos passamos por dias assim, a nossa condição se ser (des)humano às vezes deixa-nos com dúvidas, faz-nos re-pensar e acreditar que tudo seria diferente se... e os "ses" repetem-se sempre, nos intervalos daquilo que acabamos por fazer, porque é tão mais fácil levar a vida assim, a ter de mudá-la de direcção...
Belo artigo!!!! Que eloquência em admitir em palavras a crise existencial que há sempre em nós em algum momento da vida!!! =P
Em uma reportagem especial, a equipe do Repórter FENAM faz um alerta sobre os cuidados que a população e o Governo devem ter para se prevenir e se preparar para uma segunda onda da Gripe A.
Assista: http://web.fenam2.org.br/tv/showData/388496
Sôr Dôtor, é(stá) tão bom, tão bom, que levei emprestado ;)
Todos passamos pelo mesmo, mais novos, mais velhos, estudantes ou profissionais... Demonstra a inquietude própria de quem não se acomoda à sua condição e quer ser mais e melhor.
Ainda bem que assim é... Que graça tinha sermos sempre bons?! =P
Boa noite!
Parabéns pelo blog, soltei aqui umas boas gargalhadas a ler algumas das entradas... :) Tem um humor que aprecio.
Deixo este comentário na esperança de obter resposta a um pedido. Gostava de saber, em primeiro lugar, o que o motivou a escolher Medicina, no ingresso ao E.S.. Também gostava, mais importante, saber porque optou por Psiquiatria.
Isto porque, este ano, vou ingressar no Ensino Superior e penso seguir medicina... Devido à Psiquiatria/Neurologia. Sei que parece um pouco idiota estar a optar por um curso, por apenas um dos fins do mesmo... Mas é o que sinto ser ideal para mim, nada me desperta tão elevado interesse. Seja... Tenho uma miríade de perguntas que adorava ver respondidas, como por exemplo:
Como interno:
- quantas horas trabalha/estuda por dia?
- sente que lhe é exigido muito esforço?
- o exame final do internato é muito complicado, em todas as suas vertentes?
- como é o seu dia-a-dia?
Como médico psiquiatra (com a especialidade concluída)
- quantas horas diárias de trabalho?
- no que consiste a sua actividade?
- como é o seu dia-a-dia?
- existe muitas oportunidades de formação, na área de psiquiatria?
- sente que tem uma vida muito ocupada?
- continua a dedicar muito tempo ao estudo?
... Desde de já, obrigado por ler o meu comentário :)
Ciclotimia...
Bipolaridade...
Entre elas "venha o diabo e escolha".
Por se questionar se é bom profissional dá-me grandes indicios que é muito bom médico.
Ter a humildade de admitir certos aspectos ainda aumenta a minha certeza.
Gostei do que li. Gostei do que transmite. Obrigada.
Como eu entendo...depois de um 6ºano médico, a tentar estudar para um exame (aquele que nós sabemos) e depois dos primeiros "desencantos" da profissão e da vida...as primeiras dúvidas e os primeiros medos a sério...e assusta-me ver que, afinal, ao invés de apenas uma fase, tornar-se-á este sentimento numa ciclotimia interminável da profissão...haja coragem :)
Excelente blog.Te add no meu.
Acho que acontece em todas as profissões!!! Mas com predomínio de fases depressivas nos dias que correm!!
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