terça-feira, 22 de setembro de 2009

História de um cuidador...

António deixou de ter o Mundo que conhecia... há largos anos...

No início, era a apatia extrema, o desinteresse de Maria por tudo aquilo que a rodeava.
Depois, as perguntas repetidas, a presença de orificios de largura cada vez maior na rede que forma a memória, a perda dos nomes de objectos e palavras fora do uso comum (que tentava encapotar da melhor forma possível, por vezes com recurso a outras palavras igualmente elaboradas...).

António deixou de ter ordem na casa...

Gradualmente, Maria foi piorando: Os objectos fora do lugar, a incapacidade crescente para gerir o livre de cheques, o cartão multibanco esquecido numa caixa automática, o bilhete de identidade e os documentos da escritura da casa que foram parar ao caixote do lixo... E as confusões, cada vez mais...

António foi deixando de ter nome...
Maria perguntava-lhe onde estava o Marido, aquele rapaz altivo, bem-parecido e bem falante que lhe havia, a despeito das intenções do pai, roubado o sentimento. Paulatinamente, António passou a ser, de acordo com o momento, o sr. Engenheiro, o tio Lambuça, "o outro", ou, em certos momentos, negros como o cair da noite que, por saiba-se lá porque razão, teimava em os acompanhar, aquele que lhe queria "roubar o dinheiro", aquele que lhe queria fazer mal aos filhos, aquele que a queria matar. Quando assim era, Maria atirava-se a António com forças que só ela sabia onde ia buscar... E, sentindo-se ameaçada, gritava, esperneava, batia...

António quase deixou de ter amigos...
Os amigos do casal deixaram de ser tão assiduos lá em casa. Alguns vizinhos evitavam António na rua... valia-lhes a irmã de António, sempre disposta a ajudar...


António deixou de dormir tranquilo...

Quando dormia, três horas por noite, dormia em sobressalto, sempre com os nervos à flor da pele. Não fosse o diabo tecê-las, e Maria ver, nas sombras, um potencial agressor...
Maria passou a ter dificuldade gradual em se alimentar, em fazer a sua higiene pessoal... Depois, passou a não o conseguir fazer... Ao mesmo tempo, veio a incontinência, a necessidade de usar fralda durante a noite e, depois durante o dia... A necessidade de mover Maria de posição, de cuidar...

António deixou de conseguir cuidar como queria...
Depois da infecção urinária, acamou. De um momento para o outro, deixou completamente de falar... A decisão de colocar Maria numa casa de repouso foi para António a mais difícil de toda a sua vida. Contudo, sabia, no seu íntimo, que não tinha, humanamente, condições para cuidar da esposa durante as vinte e quatro horas do dia...

Apesar de ser das poucas pessoas com que se depara, António deixou de ter figura.
É, na maior parte das vezes, perpassado pelos olhar, outrora vivo, de Maria, como se algo de transparente se tratasse... contudo, talvez reminiscências da infância, os seus olhos ganham um pouco de vida, quando se aproxima um bolo de chocolate...

PS -Talvez seja necessário, além de nos lembrarmos do sofrimento dos doentes de Alzheimer, lembrarmo-nos do sofrimento dos cuidadores... e apoiá-los...

8 comentários:

ADEK disse...

Post muito pertinente. Gostei muito!

Nuvem disse...

Adorei!
Porque muita vezes nos esquecemos do sofrimento dos que rodeiam as pessoas doentes, dos que abdicam de si para cuidar deles...
Muito bom post e muito boa lembrança, parabéns!

Nina disse...

É tão triste ver uma pessoa que nos acompanhou toda a vida, ficar assim. Perder todas as capacidades, a noção das coisas... e a pessoa que cuida? essa sim precisa de muito apoio, carinho, força... enfim é a injusta vida que temos.

Helena Peixoto disse...

Caro Psiquiatra da Net,

Como é bom quando chego e descubro um novo post! Este, confesso, tocou-me particularmente... É triste vermos o degradar fisico e psicologico de alguém que amamos. E constantemente esquecemos o verdadeiro inferno dos que, dia e noite, cuidam. O maior desafio é manter a sanidade nessas situações, não compartilharmos a loucura, muitas vezes como forma de estarmos mais perto daqueles que nos sentimos a perder...
Obrigado por este post, por este alerta doloroso para o mundo real...
Peço-lhe que continue este trabalho de sensibilização daqueles que por aqui vão circulando... Este será mais um post que utilizarei nas aulas para debater esta temática...
Obrigado!

Sandra disse...

Assustador...

PR disse...

Boa tarde,
É desolador o cenário relatado.
É mais agoniante quando se trata da nossa mãe.
Aquela "Abelhinha" como nós as filhas, carinhosamente lhe chamávamos, está pouco a pouco a afastar-se de nós.
Neste momento e de acordo com a opinião de um grande mestre professor dos HUC, resta-nos a esperança de conseguir que essa "demência" não vá a pior.

Ao ler este post, fiquei com um nó na garganta apeteceu-me gritar, soltar a revolta...

Apenas consigo dizer "mas quem és tu malvada doença que me roubou a minha doce mãe..."
Pouco mais consigo escrever..., já que as lágrimas não tardam a aparecer, e não convém que elas caiam no locoal de trabalho.
Pr

Psiquiatra da Net disse...

Obrigado pelos vossos comentários.

Este post foca sobretudo o papel e a sobrecarga do cuidador, que muitas vezes é menosprezado, não apenas na doença de alzheimer mas na maior parte das doenças do foro mental.

Filoxera disse...

Sobre Alzheimer, a minha experiência passou pela de DIM e, sobretudo, pela de filha :-(
Gostei de conhecer o blog.
Até breve!