O estágio de psiquiatria, para a maior parte dos internos de psiquiatria de adultos, desperta sensações um pouco antagónicas: ou se ama, ou se odeia.
São vários os argumentos para se amar ou odiar. Mas não é sobre os defeitos e virtudes do estágio de pedopsiquiatria que devo aqui falar. Vou falar sobre aquilo que nós, profissionais de saúde, sentimos quando lidamos com familiares, e como isso pode, às vezes erradamente, interferir na forma como lidamos com os doentes.
A esse respeito, vou contar uma história.
Um belo dia, o chefe do serviço de pedopsiquiatria onde estava colocado, pediu-me para fazer o que pudesse por uma doente que tinha ido para a psiquiatria de adultos. A rapariga tinha sido seguida por ele, tendo-lhe sido diagnosticada uma doença bipolar. Foi seguida na consulta de pedopsiquiatria até aos 20 e muitos anos, altura em que, por determinação superior, teve de ir parar à psiquiatria de adultos. Andou perdida durante uns tempos, tendo tido um episódio maníaco e sido internada.
Depois do internamento, teve a primeira consulta, mas entretanto, a psiquiatra de adultos - a drª H., que a seguia, e que via vinte e muitos doentes em cada uma das manhãs em que ia dar consulta (porque nos outros dias estava noutras áreas do Hospital), resolveu sair do Hospital. Os doentes ficaram algum tempo sem médico, tendo ido parar aos cuidados de outra colega, interna como eu.
Esta colega reduziu as consultas para dez por manhã, o que é um número, na minha opinião, perfeitamente aceitável, para uma consulta de psiquiatria dada por um especialista.
(Os internos, para quem não sabe, são médicos em formação. Por isso, dada a necessidade de supervisão, os números teoricamente não deveriam ser superiores.) Como só ia um dia por semana dar consulta, porque no restante tempo, estagiava noutros sítios e fazia urgência, os doentes acumularam-se, a lista de espera cresceu, e a consulta tornou-se um caos.
Durante o período em que tinha estado sem médico, a doente tinha descompensado da sua doença bipolar. Depois de uma primeira consulta, foi-lhe marcada uma consulta para Fevereiro, à qual a doente faltou. Entretanto, só foi possível remarcar para Julho.
A mãe da doente recorreu então, chorosa, ao pedopsiquiatra que a tinha seguido uns anos antes, para tentar que ele a seguisse.
Foi assim que o chefe de serviço de pedopsiquiatria me pediu a minha intervenção, no sentido de tentar acelerar o processo. Como fazia urgência daí a uns dias, ofereci-me para seguir a doente na urgência até à próxima consulta, retomando esta depois o seu seguimento. Assim, com benefícios para a doente, não infringia ética nenhuma, e preservava a relação com a colega.
Liguei ao padrasto da doente. A conversa foi mais ou menos como se seguiu:
Eu - Estou? Estou a falar com o sr. S?
Padrasto - Sim.
Eu - Daqui fala X., médico. Estou a falar da parte do dr. J., e estou a trabalhar em psiquiatria de adultos. Estou a estagiar com ele e ele pediu-me para ver a A.
Padrasto - O dr. J? Conheço-o perfeitamente, é um excelente médico e uma excelente pessoa. Além disso, somos grandes amigos dele.
(...)
Eu (depois de 10 minutos a ouvir elogiar o chefe e a suposta amizade, quase íntima)- Como está a A.?
Padrasto - Oiça, X. - respondeu, tratando-me pelo meu nome próprio - Não está bem. Desde que deixou de ser seguida pela H. (o nome próprio da médica que a tinha seguido antes da colega interna, que não está bem. Não quer fazer medicação.
Eu - Mas eu posso vê-la na urgência! Conseguem trazê-la à urgência?
Padrasto - Ela devia era ter ficado no hospital. A H. não devia ter-lhe dado alta sem eu lhe dizer para dar alta, sem ter ido lá e ver como ela estava. É que eu percebo muito de psiquiatria, porque estive em África e sou Engenheiro...
Eu - (depois de uns segundos a tentar acreditar no que acabava de ouvir) Bom, obviamente que não vou comentar a opção e a atitude da drª H. Aquilo que lhe posso dizer é que, tanto quanto sei, tenho-a como uma pessoa extremamente competente e dedicada aos seus doentes.
Então eu vou falar com a drª K. (o nome da colega interna) para tentar acelerar a consulta.
Padrasto - A K. (nome próprio da colega interna) não percebe nada de psiquiatria. Marcou uma consulta para Fevereiro. A A. faltou, de certeza porque já não estava bem, e ela só marcou para Julho!
Eu - Também não vou comentar isso. Vamos combinar o seguinte, se a conseguirem trazer a A. à urgência daqui a 2 dias, muito bem. Caso contrário, sugiro que vão ao delegado de saúde, para ser accionado o internamento compulsivo.
Padrasto - Mas nem ela vai à urgência nem nós queremos que ela seja internada.
Eu - Pois, mas se calhar esta poderá ser a única forma de ajudar. Bom, eu de qualquer forma vou ter de ir, mas estejam à vontade para aparecer na urgência nos dias X, Y ou Z, quando eu estou de serviço na urgência- e dei-lhes a escala até ao fim desse mês. De qualquer modo, vou falar com a colega para se acelerar a consulta, mas a situação, tanto quanto sei, é complicada, e o melhor será mesmo ir à urgência. Uma boa tarde e obrigado.
E desliguei, receando, na óptica do senhor, passar, também eu, a ser considerado como alvo a abater, daí a uns tempos.
Pondo a mão na consciência, podia ter feito mais, nomeadamente ter-me oferecido para ver a rapariga no 16ª lugar de um dos meus dias de consulta. (eu limito-as, mas, talvez erradamente, não tanto.) No entanto posso invocar várias razões para não actuar assim, desde as razões éticas às clínicas.
É perfeitamente possível que tenha havido uma contra-transferência minha em relação ao padrasto, e a rapariga tenha saído prejudicada, mas o certo é que talvez não percebesse o suficiente de engenharia ou de etnologia africana para a tratar... quanto mais de psiquiatria!
4 comentários:
Há a ideia generalizada que há falta de interesse da nossa parte em querer ajudar verdadeiramente o doente.
Não querendo aprofundar muito nem julgar sobre aquilo que move a vontade de cuidar de alguém, é no mínimo absurdo que quando o fazemos, a atitude por parte dos próprios ou mesmo dos famíliares, seja agressiva, impositiva, "mal falante" sobre situações que por vezes, dificilmente se arranja relação com o assunto abordado.
Suponho que a atitude normal, do doente e familiares, seria a de colaboração, contentamento e de reconhecimento do esforço por parte de alguns profissionais, contudo penso que o doente e os "cuidadores" estão de tal ordem embrenhados numa teia de ideias quase delirantes que os impossibilita de perceber aquilo que lhe estão a oferecer.
Talvez seja por normalmente não lhes darem nada. Toda uma vida estiveram habituados a levar "pontapés" levando-os a uma permanente atitude defensivo-agressiva.
Talvez já nem saibam interpretar uma "boa acção".
É, de facto, muito complicado da nossa parte, conseguirmos "engolir sapos" mantendo o mesmo grau de vontade.
Somos humanos, mesmo que no mínimo, só nos seja permitido ser super-humanos.
Concordo a 200%!
Muitas vezes é difícil estar do outro lado, e isso aplica-se a ambos os lados da barricada!
muitas vezes ouvi da boca do doente ou da familia que percebiam mais daquilo que eu (quantas...), que não era preciso explicar nada..tratamento por tu frequente e indesejado a levar-me a impôr uma distância que os limites da boa educação deveriam deixar implicitos..mas no fim...independentemente de um engenheiro poder perceber mais de medicina que o médico, o médico ainda assim tem responsabilidade perante o doente, responsabilidade essa que utilizou para além do seu dever, verdade? só conseguimos ajudar quem quer ser ajudado, ou não?
e sim, sei que posso contornar o singstar com o lalala lala, mas eu sou uma jogadora tão brilhante que nem assim lá vai :D
Boa tarde
"Muitas vezes é difícil estar do outro lado, e isso aplica-se a ambos os lados da barricada!"
Eu estou do outro lado...
Sento-me em frente ao profissional de saúde e sem mencionar causas, procuro eliminar os efeitos nocivos de uma situação.
Só o facto de pensar nas causas, acarreta consigo tanta dôr, quanto mais falá-las...
O mais importante no meio de isto tudo é a nossa condição de seres humanos, e como tal devemos a cada um, independentemente da profissão, o respeito.
PR
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