sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Os profissionais de saúde e a hipocondríase (ou a falta dela)

Serve esta conversa para, a pedido de uma ou duas famílias, falar sobre a mania das doenças.

Contra alguns ensinamentos sabiamente veiculados por certas correntes da psiquiatria/psicologia, vou fazer um self-disclosure. Preparados? Aqui vai: tal como há pessoas que têm um cão, um gato, um canário, um peixe ou um ácaro em casa, real ou imaginário, eu tenho uma asma de estimação, que de vez em quando passeio por onde quer que vá.
O problema destas asmas de estimação além de não poderem ser compradas nem vendidas em lojas de animais, é que, tal como os cãezinhos que insistem em fazer as suas necessidades em sítios impróprios, às vezes dão problemas chatos: a falta de ar, a "gataria no peito" que insiste em miar desmesuradamente, a tosse, as exclamações animadoras dos colegas "Tu estás tuberculoso!" e outras chatices que tais... E isto repete-se, na sequência de qualquer resfriado, constipação ou gripe, por mais pequeno que seja, tal como se repetem as promessas, feitas ao jeito de qualquer político que se preze, à família próxima: "Sim, eu vou ao médico. Eu ligo já amanhã para o dr. X (e aqui vai o nome do meu médico de sempre) para ele me ver!"

A minha atitude consubstancia uma de duas possíveis nos profissionais de saúde. Todos nós, desde o admministrativo até à senhora (ou senhor) que, felizmente, limpa o chão da enfermaria, nos classificamos em dois tipos, face à nossa própria saúde:
  1. Ou somos completamente hipocondríacos
  2. Ou nos estamos completamente a borrifar para todo e qualquer sinal ou sintoma que cheire,saiba, soe ou aparente ser relacionado com uma doença.

A maior parte das vezes, (mas nem sempre) temos a posição exactamente inversa em relação àqueles que nos rodeiam:

  1. Ou somos completamente obsessivos em relação ao mais pequeno sinal de que o outro possa estar com uma nódoa negra
  2. Ou dizemos "isso é cancro da próstata" sempre que a nossa tia de 85 anos nos relata, pela trigésima terceira vez na última hora, toda a vivência fenomenológica das suas artroses.

Por falar em nisso, confesso que é difícil lidar com a situação de os nossos parentes nos caçarem em reuniões de família, aproveitando sagazmente o intervalo entre dois croquetes para nos relatar as novidades mais recentes sobre o seu corrimento nasal. Curiosamente, um não pequeno número de vezes, começam a sua interpelação pela frase "Desculpe lá estar a dizer-lhe isto agora, mas fui ao médico das varizes e ele disse-me que..." E depois, invariavelmente, terminam com a sua pergunta sacramental: "O que é que acha?" ou "Que medicamento posso tomar para isto?"

A minha estratégia em relação a isso é, ou colocar o resto do croquete à boca, fingir um engasgo e tentar ir buscar um qualquer líquido, de preferência bebível, que possa deglutir, ou então responder com evasivas do género "Pois, o ... ( e aqui ponho o nome de um medicamento qualquer, de preferência de venda livre) é muito bom para isso, mas é melhor ir ao seu médico..."

Mas não me interpretem mal. Eu até simpatizo com os hipocondríacos.

Primeiro, porque admiro a arte de transformar uma inocente dor de cabeça num glioblastoma da pior espécie.

Depois porque acredito que a hipocondríase se pode tratar. Basta assumir-se que, em vez das trinta mil doenças, que curiosamente, se assemelham todas com cancro, se tem uma perturbação de ansiedade, aguda ou crónica, que associada à mania de ter o controlo sobre as coisas (e ao medo de o perder), tem o condão de ser dirigida ao corpo. (Vendo pela positiva, há quem a dirija em relação ao Benfica, aos filhos ou à economia...) Só que isso, o desmontar desses esquemas, demora tempo, e implica um trabalho psicoterapêutico e muitas vezes psicofarmacológico. E implica informação. Adequada, simples e racional, com dados probabilísticos claros (ao contrário do que aparece em certas bulas de medicamentos)... Por exemplo, qual é a probabilidade de uma dor de barriga ser o reflexo de uma carcinomatose peritoneal?

E depois, porque, qual lobisomem em noite de lua cheia, me transformo num hipocondríaco, quando por acaso sofro de coisas que não percebo muito bem a fisiopatologia... Mas aí, arranjo forma de controlar a ansiedade (que é adaptada à situação, entenda-se) e tento não perguntar aos médicos da minha lista de contactos se vou desta para melhor. Até porque não quero aumentar de forma demasiado indiscreta os lucros da minha operadora de telemóvel...

3 comentários:

Baronesa Vermelha disse...

Aqui vai um manifesto de solidariedade quanto ao sentimento comum de após um dia inteiro de sinais, sintomas, reais, irreais, enfatizados, ignorados... chegar a casa, ao restaurante, ao centro comercial, e isso ser apenas uma mudança de cenário para histórias comuns, contadas no ambiente hospitalar.
Penso que por isso, pertenço ao grupo dos que se “borrifam” quando o próprio corpo começa a tentar comunicar que algo não está bem.

Sahaisis disse...

eu pertenço à classe "não me ralo nada", mas no que toca à familia, é o degredo, tudo me dá para somatizar..o conhecimento é arma perigosa...
recordo-me de quando fiz estágio no IPO, via frequentemente casos de melanoma maligno..escusado será dizer que tudo o que era sinal em pessoa amada e/ou querida minimamente suspeito dava em recomendação de ida ao médico..enfim :P

Supertatas disse...

delicioso : )