Há uma história antiga, quase do tempo em que os animais falavam, utilizando expressões como "Apre, menino, que ferro!" para dizer "Isto é uma seca!", que reza da seguinte forma:
"- Um médico, famoso no seu tempo, é consultado por um homem que se encontra triste e perdeu o gosto nas actividades que fazia, outrora prazerosas.
Não havia, na altura, psicologia (ou se calhar já havia, mas ainda nos seus primórdios). O que não tinha, ainda evoluído do tronco comum da Medicina era a Psiquiatria. Não existia psicofarmacologia, nem qualquer outro tipo de tratamentos utilizados para a depressão.
Face aos cânones que tinha aprendido na faculdade [na altura não havia, amiúde, congressos, e presumo que qualquer tratamento que não fosse uma sangria seria considerado um grande avanço científico], o eminente seguidor de Hipócrates fez a sua prescrição:
- "Excelentíssimo senhor: [diz-se que era assim que eles falavam na altura... ] queira vossa excelência assistir ao grandioso espectáculo de circo que acaba efectivamente de chegar à nossa mui ilustre cidade. E queira V. Exª ver o maravilhoso número do "Palhaço" (um famoso comediante que trabalhava no circo). Está nele a cura para o seu mal."
Na altura, caros amigos, não existia Infarmed nem European Medicines Agency. O circo não tinha sido submetido a rigorosos ensaios clínicos, contra placebo e contra comparador activo, sempre com a garantia de que se cumpririam todos os preceitos éticos e não seriam lesados animais.
Tão pouco o Palhaço tinha sido certificado na sua produção. Nem tinha sido submetido a rigorosos controlos de qualidade, antes e após a venda dos bilhetes.
Seguramente, o homem não era sabedor de tal facto. Todavia, levantou-se, e retorquiu timidamente, qual contraindicação constante num resumo das características do medicamento:
- Mas, excelentissimo e ilustríssimo Senhor Doutor: Curvo-me, chego com os pés ao chão e ergo altares lá em casa para Vossa Excelência. Peço perdão e humildemente me fustigo por sequer ousar dirigir a palavra a tão grande e nobre figura da Academia, mas... eu sou o Palhaço...
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Não se sabe o corolário da história. Se tal se passasse hoje, o médico seria obrigado a reportar, para o departamento de farmacovigilância do circo, tal evento adverso.
Mas, é certo, que, hoje, os animais não falam... comentam nos sites de certas publicações que se dizem jornais.
As pessoas já utilizam termos mais coloquiais, e "Mano" passou a ser uma interjeição como qualquer outra.
Os médicos já não são venerados como se de um Deus na Terra se tratassem, e os circos... bem, os circos... lutam contra a oposição de activistas radicais do PAN, que se esquecem que eles próprios são animais enjaulados neste Planeta...
Mas os palhaços tristes permanecem.
Dizem os psicanalistas - os tais que se regojizam sempre que, em consulta, dizemos cobras e lagartos da nossa mãe - e em particular um autor chamado Janus, que os comediantes são brilhantes, furiosos, desconfiados, (...) deprimidos, tímidos, sensitivos e com medo, que lutam contra os seus medos constantemente.
O que é certo, é que estudos subsequentes associam determinados traços de personalidade - sobretudo baixa conscienciosidade e baixa extroversão , bem como alta abertura para a experiência, à profissão de comediante.
É devido à baixa extroversão (ou alta introversão) que os comediantes têm, parte deles personas diferentes dentro e fora de palco.
E estes traços de personalidade não surgem do nada. São a forma como vamos desenvolvendo a nossa maneira de ser ou estar perante nós próprios e perante os outros, ao longo da vida. Têm em conta o nosso temperamento, mas também a forma como nos vamos relacionando com "a nossa circunstância". Como vamos sobrevivendo. Como vamos, parafraseando Carlos Tê, aprendendo "de tanto saltar muros e fronteiras" e crescendo "com a força bruta das trepadeiras".
E o certo é que a nossa cultura retrata, desde há séculos, o tema (veja-se, por exemplo, a ópera de Leoncavallo). Da mesma forma, vieram a revelar-se palhaços tristes muitos dos que fazem parte do nosso imaginário.
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Quanto a mim, fui e sou palhaço triste.
Fui palhaço triste, quando confrontado com a doença de Alzheimer de um familiar próximo. Ao menos punha uma pessoa, que já mal me conhecia, a rir a bandeiras despregadas, e calava-me por dentro.
Fui palhaço triste, quando coloquei na boca de personagens fictícias, ao longo dos últimos anos, tudo aquilo que o meu coração envenenado não ousou verbalizar. Punha outra pessoa a rir, e calava-me por dentro.
Fui palhaço triste quando lidei com a simples ansiedade de estar com os outros. Punho os outros a rir e calava-me por dentro.
Porque quando deixar de ser triste deixarei de ser palhaço.